sexta-feira, maio 26

POLÍTICOS DE FÉRIAS (I)

Os políticos vão de férias, antes do calor apertar. Compulsivamente. O país dá-lhes folga. A alguns porque são dispensáveis. A uns quantos, porque desconhecemos o que fazem e, portanto, é indiferente a sua presença ou ausência. E a muitos porque, assim dispensados, concorrem menos para a desgraça da Nação.
Até meados de Julho, mandam as festas e o futebol. É obvio que a expressão é redundante, pois o futebol é, em si mesmo, a festa que mais devotos congrega e mais paixões desperta. Cristãos, muçulmanos e agnósticos, gente da direita, da esquerda e do centro, patrões e trabalhadores, todos se rendem à religião do golo, à política do drible, aos milhões do remate certeiro. Miúdos e graúdos, homens e mulheres, todos, deitam para trás o conflito de gerações e dão tréguas à guerra dos sexos.
Até meados de Julho, as selecções nacionais de futebol mandam nas nossas vidas. Sintonizamos a atenção para dentro das quatro linhas. O rectângulo de jogo transforma-se na figura geométrica perfeita. O relato nas ondas hertzianas tem a musicalidade de uma sinfonia e mais argumentos do que um debate parlamentar. As imagens da bola no ecrã valem outro tanto como as paisagens da Maluda ou um quadro neofigurativo de Júlio Pomar. E a decisão do árbitro é sentença judicial, que mantém uns em prova e outros devolve às origens, de mãos a abanar.
Até meados de Julho as selecções nacionais de futebol estipulam horários, fazem primeiras páginas nos jornais e conversas nos cafés, monopolizam audiências, tomam conta dos televisores, desfraldam bandeiras.

POLÍTICOS DE FÉRIAS (II)

Depois, bom… depois S. António, S. João e São Pedro, santos populares, encarregam-se do resto da festa, de fazer transbordar os copos, engalanar os arcos, cheirar a manjerico, crepitar a fogueira, luzir o balão, soltar um pé de dança, apaixonar corações.
Pouco importa se José Sócrates promete recuperar o país nos próximos 20 anos.
Pouco importa que o professor Carrilho não tenha aprendido a lição dos votos.
Pouco importa que Carlos César mude de políticas mas não renove os políticos.
Pouco importa que haja desempregados, mas a propaganda oficial diga o contrário.
Decididamente, não estamos virados para essas minudências. Um drible do Cristiano, uma defesa do Ricardo, um remate certeiro do nosso Pauleta, isso sim, enche-nos a alma, vale por 10 discursos, por meia dúzia de estatísticas ou por uma mão cheia de promessas. Os políticos podem ir de férias, antes do calor apertar. De boa vontade, o país lhes concede a folga.

quinta-feira, maio 18

EVIDÊNCIAS

terça-feira, maio 16

FESTAS


Já se sente o movimento. Nas ruas as gentes rodopiam. Os passeios assemelham-se a formigueiros humanos. Mistura-se o cheiro do algodão-doce, das pipocas e das tasquinhas. Multiplicam-se as cores e os olhares. Estranhos e conhecidos cruzam o destino, certo ou errante, pouco importa, porque os passos se encaminham para o mesmo espaço: o campo do Senhor. Praça circular, geometricamente perfeita como perfeitas são as graças que os peregrinos imploram no santuário.
Já desfilam promessas. Na volta do campo, cada um, homem ou mulher, jovem, menos jovem ou idoso, cada um, na intimidade do seu recolhimento quer dar a volta ao destino, quer contrariar as tribulações, inverter o sentido da vida, dar-lhe outro rumo. Quer fugir ao calvário, evitar o escárnio do Pretório, não vestir o manto de púrpura, nem experimentar a realeza da coroa de espinhos.
Cada um carrega a sua cruz. Não se vê. Sente-se. O vagar dos passos, as ave-marias desfiadas, o peso dos círios, vergam o peregrino.
Arrastam-se joelhos sobre a calçada. Pedras seculares, inertes. Testemunhas do tempo e dos homens, das preces e das graças. Testemunhas dos vulcões e da guerra, testemunhas da partida, com regresso incerto. Arrastam-se joelhos sobre a calçada. Pedras seculares, inertes. Testemunhas da doença e da alegria.
A cada prece, o Ecce-Homo responde com o mesmo olhar. Fixa-nos, lá do fundo do coro-baixo, ou no cimo do seu andor. Há mais de trezentos anos repete-se o ritual. As ruas engalanadas. Fatos e vestidos aprumados. A procissão. As mesmas ruas, outrora roteiro dos conventos da cidade. Mas em cada instante renova-se a confiança e a fé de um povo.
Três séculos. Quantas promessas lhe dedicaram. Quantas lágrimas derramaram pela face de gente simples e rude, à passagem da imponente imagem.
Quantos círios, quantos quilos, quantas toneladas de cera puseram aos pés do Senhor.
Quantas mãos bateram e rodaram a roda do convento. Quantas pétalas desfolharam e lançaram sobre o seu andor. Quantas vezes tocaram o hino. Quantos joelhos sangraram. Quantos foguetes estalaram em sua honra. Quantas luzes se acederam. Quantos flashs dispararam. Quantas orações rezou este povo, Senhor. Quantos milagres derramaste...
Já se sente a festa. Outra vez. Como há um ano, dois, dez, cem. Muitos anos. Como daqui a muito tempo.

sexta-feira, maio 12

SECRETÁRIO DAS LETRAS

O secretário regional da Habitação e Equipamentos é um homem letrado, em toda a dimensão do termo. Com ele tudo é passível de ser reduzido a letras. Desde logo, as bancárias, por via das obras que o respectivo departamento governamental manda executar e depois pagar quando for possível.
É dentro desse espírito, digamos, letrado que a secretaria da Habitação e Equipamentos se propõe efectuar as famigeradas estradas em regime de SCUT, que os nossos impostos e os dos nossos filhos hão-de pagar por mais de trinta anos. Querendo gerir os dinheiros públicos como se de um orçamento familiar se tratasse, faz agora e paga depois, pouco importando as variações das taxas de juro, as revisões de preços e a manutenção a que as estradas, necessariamente, terão de ser sujeitas ao longo dos tais 30 anos.
Mas não são estas as letras do secretário da habitação e equipamentos que agora quero partilhar com o leitor. Trata-se, antes, das letras no sentido mais literário do termo, dos vigorosos e criativos discursos com que frequentemente o governante nos brinda.
O titular da pasta da habitação e equipamentos é um verdadeiro cabouqueiro da palavra, um exímio arquitecto dos argumentos, um engenheiro da comunicação. No texto dito, ou nas palavras escritas – isso mesmo, nas letras – o secretário da habitação e equipamentos é imbatível.
Por estes dias tive nas mãos a revista de bordo da SATA. Ali, em página inteira, a secretaria da habitação e equipamentos publicita as estradas regionais, como se houvesse alternativa de circulação, como se nos fosse dado a escolher entre as estradas, boas ou más, que pagamos com os nossos impostos, e outras de iniciativa privada. É evidente que há estradas municipais, mas essas pela sua própria natureza, não são vocacionadas para a ligação entre concelhos, nem para suportar grandes volumes de tráfego.
Não contente, ou melhor não satisfeito, para que não se confundam os termos, com a patética ideia de publicitar estradas, a veia letrista da secretaria da habitação e equipamentos chega ao ponto de dizer-nos, a nós açorianos e aos turistas que, e cito, “embora diferentes umas das outras, as nove ilhas dos Açores têm algo em comum”. E agora pasme-se, onde foi o governante encontrar o denominador da unidade dos Açores, e volto, portanto, à citação: “É o caso das estradas regionais com a marca da Secretaria da Habitação e Equipamentos”. Atente-se no vigor e na acutilância da revelação. Já não é a cultura, nem tão pouco o ambiente, menos ainda a geografia e a história como dizia Nemésio, que dão carácter e unidade às nossas ilhas. Agora, são as estradas. E não umas quaisquer, mas as que têm a marca da secretaria regional da habitação e equipamentos – ainda que ninguém saiba onde e como se vê o registo dessa, suponho, indelével marca.
Acabo esta crónica como comecei. Reconhecendo que o secretário da habitação e equipamentos é com toda a pujança um homem das letras. A nós, modestos cidadãos, não basta pagar as letras que o governante faz à nossa conta. Temos ainda que aturar aquela incorrigível mania de por em forma de letra a dimensão política que nunca há-de ter. Paciência.