Já se sente o movimento. Nas ruas as gentes rodopiam. Os passeios assemelham-se a formigueiros humanos. Mistura-se o cheiro do algodão-doce, das pipocas e das tasquinhas. Multiplicam-se as cores e os olhares. Estranhos e conhecidos cruzam o destino, certo ou errante, pouco importa, porque os passos se encaminham para o mesmo espaço: o campo do Senhor. Praça circular, geometricamente perfeita como perfeitas são as graças que os peregrinos imploram no santuário.
Já desfilam promessas. Na volta do campo, cada um, homem ou mulher, jovem, menos jovem ou idoso, cada um, na intimidade do seu recolhimento quer dar a volta ao destino, quer contrariar as tribulações, inverter o sentido da vida, dar-lhe outro rumo. Quer fugir ao calvário, evitar o escárnio do Pretório, não vestir o manto de púrpura, nem experimentar a realeza da coroa de espinhos.
Cada um carrega a sua cruz. Não se vê. Sente-se. O vagar dos passos, as ave-marias desfiadas, o peso dos círios, vergam o peregrino.
Arrastam-se joelhos sobre a calçada. Pedras seculares, inertes. Testemunhas do tempo e dos homens, das preces e das graças. Testemunhas dos vulcões e da guerra, testemunhas da partida, com regresso incerto. Arrastam-se joelhos sobre a calçada. Pedras seculares, inertes. Testemunhas da doença e da alegria.
A cada prece, o Ecce-Homo responde com o mesmo olhar. Fixa-nos, lá do fundo do coro-baixo, ou no cimo do seu andor. Há mais de trezentos anos repete-se o ritual. As ruas engalanadas. Fatos e vestidos aprumados. A procissão. As mesmas ruas, outrora roteiro dos conventos da cidade. Mas em cada instante renova-se a confiança e a fé de um povo.
Três séculos. Quantas promessas lhe dedicaram. Quantas lágrimas derramaram pela face de gente simples e rude, à passagem da imponente imagem.
Quantos círios, quantos quilos, quantas toneladas de cera puseram aos pés do Senhor.
Quantas mãos bateram e rodaram a roda do convento. Quantas pétalas desfolharam e lançaram sobre o seu andor. Quantas vezes tocaram o hino. Quantos joelhos sangraram. Quantos foguetes estalaram em sua honra. Quantas luzes se acederam. Quantos flashs dispararam. Quantas orações rezou este povo, Senhor. Quantos milagres derramaste...
Já se sente a festa. Outra vez. Como há um ano, dois, dez, cem. Muitos anos. Como daqui a muito tempo.
terça-feira, maio 16
FESTAS
Publicada por Joaquim Machado à(s) 22:30
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